O vulcão Júlio Barroso
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O que eu sei é que pelas tantas eu desci ao banheiro pra descarregar um pouco das Heineken que tinha tomado e dei de cara com um doidão parado na frente do espelho com uma garrafa na mão. De repente, ele quebrou a garrafa na pia e começou a esfregar no rosto, aos berros.
Por Valdir Zwetsch
A cena não podia ser mais clássica. Um hidrante estragado jorrando água, meia dúzia de desocupados na calçada, o calor úmido e sombrio faziam da 1st. Street naquela manhã um contraste estranho com o que rolava ao redor. Era agosto de 1980 e Nova York estava embaixo de um calor seco e duro de agüentar. Parado junto à sarjeta onde a água que escapava do hidrante formava um rio, numa esquina dark do barra-pesada Lower East Side, o motorista do táxi perguntou: – Tem certeza que é aqui?
Olhei mais uma vez pro papelzinho com o endereço. Era.
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Pouco mais de uma hora antes, tínhamos desembarcado no aeroporto John Kennedy, onde o Júlio devia estar nos esperando. Não estava. No táxi, dei o endereço do apartamento dele para o motorista e puxei aquele papo furado de sempre: o calor, o trânsito... Quando botei atenção na ficha do cara, colada no porta-luvas, vi o nome: Silva, Emílio.
Silva?
– Silva? Are you brazilian?
– Yes, man!
– We too... E por que a gente tá falando inglês?
O Emílio era uma figura. De dia, rodava a cidade no yellow-cab. À noite, tocava percussão em night-clubs. Era um dos poucos brasileiros aceitos pelos indianos que dominavam o serviço de táxis em Nova York. Conhecia bem a cidade. E foi logo alertando: teu amigo mora num pedaço estranho, um enclave barra-pesada dominado por porto-riquenhos, rola de tudo por ali...
Normal. Eu conhecia pouco o Júlio, pra mim ele ainda era o irmão da Denise Barroso, mulher do meu amigo Okky de Souza. Sabia dele o suficiente para estranhar se estivesse instalado num flat de Downtown ou coisa parecida. O combinado era que a gente ia se hospedar no apartamento dele por um tempo, e depois achar outro lugar pra passar mais umas três semanas. Antes de sair de São Paulo, Denise me deu 300 dólares para entregar ao Júlio. Ele estava precisando de grana.
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Na portaria do prédio, um muquifo bem adequado ao estilão da rua, não nos deixaram subir. O Júlio não estava, tinha ido esperar um casal de amigos no aeroporto... Ok, falei. A gente libera o táxi, deixa a bagagem na portaria e dá um rolê por aí...
– Nem pensar – interrompeu o Emílio. – Eu não deixo vocês aqui. Ou boto vocês num hotel, ou espero com vocês até o cara aparecer...
Do nada, surgiu um gringo alto, branquelo, magro, cabelos compridos, tipo hippie. O Emílio nos ajudou a entender o inglês meio atrapalhado que o cara, talvez um nórdico, falava.
Sabia que a gente estava trazendo dinheiro pro Júlio, e queria uma parte, sei lá quanto... Insistia que já estava tudo combinado, o Júlio devia uma grana pra ele, relativa à venda de uns pratos de bateria...
Enquanto eu tentava convencer o cara – que não desgrudava – de que não ia dar porra nenhuma de grana a ele, que ele tratasse de cobrar a conta (se é que era verdade) do próprio Júlio, o Emílio me chamou de lado:
– Vamo embora, cara. Isso é rolo. Vou deixar vocês num hotel legal e barato.
Deixamos o escandinavo falando sozinho.
Instantes antes, notei que os poucos vagaus que estavam na calçada sumiam rapidamente.
Um garoto, escurinho, cara de latino, corria pela rua, discretamente soltando a senha:
– The men… The men…
Os homens! De uma esquina, uns três quarteirões adiante, na direção do rio Hudson, surgiu o carrão da polícia, se arrastando lento por uma 1st. Street que tinha ficado totalmente deserta.
Pela segunda vez, na minha primeira manhã em Nova York, me vi no meio de uma cena clássica, de filme.
Embarquei rapidamente no táxi.
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O Emílio nos deixou, vejam só, no Earle Hotel! No coração do Greenwich, de cara para a Washington Square. Lembrei que o Bob Dylan tinha morado nesse hotel nos anos 60 – e comecei a achar que a coisa ia ser boa.
Consegui passar um recado para o Júlio, se bem me lembro por telefone, e ele apareceu no mesmo dia.
Estava precisando mesmo dos 300 dólares – e não era para pagar pratos de bateria pra norueguês nenhum...
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Júlio Barroso era alto, e falava alto.
Usava uns óculos de fundo de garrafa, e enxergava longe.
Andava quase sempre de branco, da camiseta às calças.
Meias brancas também, e tênis All Star – brancos, evidentemente. Deu liga.
Ele era um poeta instantâneo, falava pelos cotovelos, e muitas vezes a fala, turbinada por alguns aditivos, não dava conta de acompanhar a usina de idéias e projetos que funcionava 24 horas por dia dentro daquela cabeça anárquica, libertária e iconoclasta. Rabiscava teses, poemas, letras de músicas futuras, manifestos, declarações de amor... em papéis que enfiava nos bolsos ou deixava pelo caminho.
Foi meu guia intelectual e sensitivo pela superfície e pelos subterrâneos de Nova York no justo momento em que a cidade era um dos berços do que a indústria do show-business convencionou chamar de new wave.
Consumidor voraz e atento de todo e qualquer tipo de som, tinha lá suas preferências bem definidas. Naquele agosto de 80, sua lista de tops incluía tudo de reggae, mais Joy Division, Talking Heads, B-52s, Pretenders, Blondie...
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Júlio freqüentava um templo, e pra lá nós fomos várias noites.
Era o Ritz. Um velho cinema dos anos 40 no West Side, recauchutado, transformado em night-club. Todo mundo que sabia das coisas ia lá pra dançar ou só pra ouvir. Sempre tinha um figurão na platéia: na noite em que eu ouvi e vi o mestre Jerry Lee Lewis, já grisalho, demolindo tudo no piano, dizem que John Lennon estava lá. E Lou Reed também. Se é verdade, não sei.
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O que eu sei é que pelas tantas eu desci ao banheiro pra descarregar um pouco das Heineken que tinha tomado e dei de cara com um doidão parado na frente do espelho com uma garrafa na mão. De repente, ele quebrou a garrafa na pia e começou a esfregar no rosto, aos berros.
Não esperei pra ver o sangue escorrer. Voltei rapidamente prá pista, onde um elétrico Júlio Barroso dava seu show de dança a bordo de qualquer mina que passasse num raio de dois metros.
Naquele agosto tinha também um festival de música, patrocinado pelo refrigerante Dr. Peppers, no Central Park. Os shows começavam no final da tarde e entravam noite adentro, às sextas, sábados e domingos.
A miscelânea mais eclética que se pode imaginar.
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Lembro de um concerto maravilhoso de B. B. King. De outro, inesquecível, de um cara sem grande expressão, David Bromberg, que montou uma banda de craques e passeou com extrema delicadeza de baladas pop a blues melancólicos. No final, o palco escuro, a banda foi saindo devagarinho, e sobrou apenas um sax, solando dramaticamente por longos minutos na noite novaiorquina.
Lembro de um concerto maravilhoso de B. B. King. De outro, inesquecível, de um cara sem grande expressão, David Bromberg, que montou uma banda de craques e passeou com extrema delicadeza de baladas pop a blues melancólicos. No final, o palco escuro, a banda foi saindo devagarinho, e sobrou apenas um sax, solando dramaticamente por longos minutos na noite novaiorquina.
Vi também os Ramones – darlings da hora junto ao público teen – e fiquei bem impressionado com a energia daquela moçada. E, claro, dois ícones da recém-nascida new-wave também farrearam por lá. Os B-52s, com aquelas estupendas garotas de cabelos dos anos 50, sacudiram a galera com total competência. E sob o comando do discreto David Byrne, o Talking Heads, que voltava de uma bem-sucedida passagem pelo Canadá, mostrou a base das "mélanges" sonoras que dominariam o pop durante boa parte da década que estava começando.
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O Julio não tinha muita paciência pra aquilo, não. Quando ia a um desses shows, logo achava coisa melhor pra fazer e sumia.
O Julio não tinha muita paciência pra aquilo, não. Quando ia a um desses shows, logo achava coisa melhor pra fazer e sumia.
Essa coisa de rock ao cair da tarde, ao ar livre, emoldurada pelos prédios avermelhados da Big Apple, não era a praia dele. Preferia as discotecas, os muquifos, o andar de baixo. Quando não arranjava uma namorada, uma festa ou um endereço descolado – acabava a noite no Ritz.
E de lá, sem rumo nem relógio, saía a perambular pelas madrugadas. Entrava na primeira porta aberta que encontrasse como se fosse de casa. Descascava um inglês macarrônico com sotaque carioca, conquistava amigos instantâneos, e ia embora de manhã, já com sol alto.
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Uma tarde, conversando no balcão de uma dellicatessen, o Júlio me convocou para um show no Ritz, que não podíamos perder. Kid Creole & the Coconuts. Pra ele, não era novidade. Eu ainda não tinha ouvido falar.
Kid Creole era o codinome de August Darnell, filho de pai porto-riquenho e mãe canadense, que aparecera no cenário novaiorquino com a Dr. Buzzard's Original Savannah Band – uma turma muito animada que botava pimenta caribenha no swing das big-bands americanas.
No palco do Ritz, decorado com coqueiros fake e iluminação caliente, o Kid mulato surgiu vestindo um conjuntinho bege extremamente bem cortado que ficava entre o safári africano e a guayabera caribenha. Um show de elegância cucaracha. Ao lado dele, as louríssimas, gostosíssimas e afinadíssimas Coconuts. A banda, com percussão e metais na medida, completava o cardápio latino da festa.
Ninguém conseguia ficar parado. E o Julio, suando na pista, ruminava idéias que já curtia há algum tempo.../
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Que eu saiba, ele nunca tocou instrumento nenhum. No máximo, arriscava um pandeiro ou um bongô nos momentos de maior leveza. Mas tinha uma musicalidade nata, uma atitude musical em tudo o que fazia. Os poemas dele nasciam automaticamente cantáveis. Também não cantava bem, tecnicamente falando. Mas isso não tinha importância.
Na verdade, dentro daquela cabeça havia como que uma trilha musical por onde rolavam os pensamentos, a voz, os neurônios que comandavam o gestual.
Filho do rock,
do rap,
do samba,
da salsa,
do mambo,
do maracatu,
do breque,
do break,
bebop
&
hip hop
tava ali um cara pop.
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De volta pro Brasil ainda naquele ano, o Julio reencontrou bons amigos da cena pop. Nelson Motta, Lobão, Okky de Souza, Roberto de Carvalho, entre dezenas de outros. Trazia, pronto na cabeça, o som que faltava por aqui.
Antes, ele já tinha lançado as bases filosóficas do que chamava de "música prapular brasileira" num entusiasmado "Manifesto gargalhada".
Quem conta bem essa história é o Nelsinho Motta, no livro Noites Tropicais – solos, improvisos e memórias musicais (editora Objetiva, 2000). Está lá, escrita pelo padrinho incondicional, a gênese da Gang 90 & Absurdettes – a irresistível versão brasileira de Kid Creole & The Coconuts.
Júlio, todo de branco, no papel de Júlio Barroso – um Kid Darnell Kreole do lado de baixo do Equador. E as impagáveis Absurdettes: a namorada holandesa dele, Alice Pink Pank; a então namorada do Nelsinho Motta, May Pinheiro, que ganhou o nome artístico de May East e hoje vive numa comunidade na Escócia; Denise Barroso, irmã de Júlio e mulher do Okky de Souza, no papel de Lonita Renaux; e a dj carioca Luiza Cunha. Na primeira versão, a farra era alimentada por um time instrumental muito bom de serviço: Guilherme Arantes nos teclados e arranjos, Gigante Brasil garantindo o pulso black da bateria, e os ótimos Wander Taffo (guitarra) e Lee Marcucci (baixo), convocados por empréstimo da banda de Rita Lee.
A Gang 90 estreou em grande estilo na discoteca Paulicéia Desvairada e fez um barulho danado. Do circuito da noite paulistana, logo pulou para programas musicais da tv. E ganhou o País inteiro no festival MPB-Shell, da TV Globo, em 1981, com a escrachada e debochada historinha de filme B que Júlio contava em "Perdidos na Selva":
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"Eu e minha gata
"Eu e minha gata
Rolando na relva
Rolava de tudo
Num covil de piratas pirados
Perdidos na selva
Orangotangos de tanga no tango
Tigres em pele botando a mesa
Papagaios, bem-te-vis e araras
Revoando flores, folhas e varas
Oh que calor tropical
Mas que folhagem manera
Deu febre na floresta inteira
Quando o avião deu a pane
Eu já previa tudinho
Me Tarzan, you Jane
Incendiando mundos, neste matinho "A miscelânea antropofágica" da Gang 90 balançou as cadeiras da moçada que inundava as pistas de dança.
E o mais importante é que abriu a picada prá galera que queria fazer o novo rock brazuca. A primeira resposta veio logo, do Rio, com o estouro da Blitz. A porteira estava aberta, e o que aconteceu depois todo mundo sabe...
A Gang 90, com várias formações diferentes, não durou uma década. Viveu o suficiente para emplacar um sucesso de novela – "Nosso Louco Amor", em 1983 – e deixar dois lps para a posteridade: "Essa Tal de Gang 90 & Absurdettes" e "Rosas & Tigres".
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Júlio era carioca e adorava o Rio. Mas nessa fase, quando não fugia pra Nova York, vivia em São Paulo e amava a cidade. Pulsava com ela, e como ela. Morava num apartamento do bairro Santa Cecília. A cama ficava junto à janela, ao nível da janela – e a janela ficava sempre aberta.
Ao seu jeito, Júlio dormia praticamente no ar, respirando a cidade. Uma noite, em junho de 84, sabe-se lá como, despencou.
A música brasileira perdeu graça.
E Júlio Barroso, guru e arauto da modernidade, se eternizou como um vulcão. Eu não diria que extinto.
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