Yés, I was. Não no quente, circulando nos engarrafamentos da via expressa do Estado de Nova York rumando para a rural cidade de Bethel, no estado de Nova York, no chuvoso fim de semana entre 15 e 18 de agosto de 1969 para invadir com mais de 500 mil pessoas a fazenda de 600 acres de Max Yasgur, e participar do evento único e lendário de música popular da era hippie da paz e amor e da contracultura, transferido do pequeno vilarejo de Woodstock em função da recusa da população.
No final de janeiro de 1977, dois adolescentes com suas mochilas nas costas, quase dezessete anos de vida e “experiências”, alguma grana no bolso e uma imensa vontade de fazer arte da história do rock brasileiro, participando de um festival que, segundo os organizadores do evento, deveria reunir, em Mato Camboriú, atual praia do Pinho, mais de 100 mil jovens à um custo de 700 mil cruzeiros e a promessa de curtir O Terço, Mutantes, Casa das Máquinas, Bixo da Seda, A Chave, Made in Brasil, Rita Lee & Tutti Frutti, Som Nosso de Cada Dia, Eduardo Araújo, Blindagem, e outras bandas menos votadas, e reproduzir toda a magia do “Woodstock quente” em terras tupiniquins.
Em uma manhã quente do final de janeiro de 1977, partíamos de “Santiures Beach (Praia de Santa Teresinha, no litoral norte do Rio Grande do Sul, entre Tramandaí e Capão da Canoa) rumo à Santa Catarina. Com a sorte dos marinheiros de primeira viagem, rapidamente conseguimos a nossa primeira carona na estrada Interpraias, que nos conduziu até Capão da Canoa. Ainda bafejados pela fortuna, em pouco tempo estávamos em Torres. Atravessando o rio Mampituba (metaforicamente, é claro), deixamos para trás o amado pago do Rio Grande do Sul.
Na BR-101, talvez por estarmos invadindo terras estrangeiras, os ventos da bonança mudaram de sentido. Seria uma saudade prematura do nosso torrão natal? De qualquer forma, foram horas de caminhadas, subindo e descendo, os dedos indicadores cansados de tantas negativas já ligados no automático, resolvemos parar em um posto de combustíveis, pois aproximava-se o anoitecer, e nossa inexperiência mochileira falou mais alto, melhor não correr riscos na estrada à noite. Encontramos um grupo de roqueiros que, assim como nós também estavam se dirigindo para o festival, vindos de cidades do interior gaúcho e da capital. Conseguimos uma carona até a cidade de Tubarão, com a intenção de jantar, pois até o momento tínhamos sobrevivido com os lanches que havíamos trazido. Caminhando pelas ruas da cidade, sob o olhar desaprovador de alguns moradores, fomos surpreendidos por um temporal de verão. Conseguimos abrigo na rodoviária, onde fizemos um lanche e experimentamos uma mistura de cerveja com coca-cola, sob protestos veementes do meu estomago. Adormecemos nos bancos de madeira embaixo da marquise, preocupados e alertas.
Quando amanheceu, inquietados com o atraso em nosso planejamento inicial, resolvemos assaltar nossos cofrinhos e pegar um ônibus até Florianópolis. Recuperado o tempo perdido, retomamos a estrada e, duas caronas após, nos encontrávamos no alto da colina que nos levaria, por uma estradinha surrada de terra, com cercas de telas, ao acesso junto à Praia do Pinho, em um local chamado Mato Camboriú.
Descemos a estrada de chão batido com nossos corações nas mãos, antevendo o espetáculo que nos esperava. Aproximamo-nos de uma grande área verde cercada, tendo ao fundo o maravilhoso e morno mar de Santa Catarina, adquirimos nossos “passaportes” e acessamos o local.
Visualizamos uma pequena cidade de barracas multicoloridas, e apesar de somente doze mil pessoas das cem mil previstas terem comparecido, foram três dias e noites muito intensos de rock n’ roll, celebração de paz e amor à beira mar, Rita Lee & Tutti Frutti, Casa das Máquinas, Made In Brasil, o Bixo da Seda, de Porto Alegre, A Chave, de Curitiba , Eduardo Araújo, Som Nosso de Cada Dia, Blindagem, entre outros. O Terço e os Mutantes cancelaram e muitas bandas não programadas se apresentaram de graça.
Traído pela distancia temporal de mais de 30 anos e pela sublimação natural de um jovem de 17 anos que pela primeira vez participava de uma celebração desse tipo, lembro-me dos banhos de mar, de assistir aos shows deitado na grama, tendo o céu estrelado como teto e o gigantesco palco e sua pirotecnia de luzes, movimento e som como um caleidoscópio dos sentidos, e assim adormecer, sendo despertado em seguida por um riff de guitarra ou a batida de uma bateria. Lembro da figura mitológica do Fughuetti Luz levantando o público e a gente cantando junto “Todo mundo sabe, que é bom se antenar, Nessas histórinhas que a cabeça faz, Se você não corre, pode até ficar, Dentro de um quadrinho, e é pra sempre achar, que tah bom,Todo mundo sabe, que é bom se espalhar, Mas às vezes corre muito devagar, Subindo a escada pra depois descer, Com muito cuidado pra não tropeçar em você, Não perca o trem, E deixa acontecer, Não perca o trem, É pra não se perder, Deixado no centro do amor, Compreendendo o sonho e nada mais..." Lembro da Polícia Federal ameaçando suspender o festival se os roqueiros continuassem com os palavrões. Lembro do Simbas, vocalista da casa das Máquinas ficando nu no palco.
E o carnaval provocado pelos Hare Krishna, suas batas laranjas, seus cortes de cabelo, pinturas e instrumentos ecoando o mantra "Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare," e criando um trenzinho de seguidores que percorriam o acampamento reproduzindo seus cânticos. Um grupo de descontentes acionou a PM, e os trinta Hare Krishna foram colocados em um onibus e um camburão na calada da noite, com direito a abanos e adeusinhos ao som de "Adeus amor eu vou partir..." No quesito ocorrências policiais, trinta jovens maiores de idade foram presos, principalmente por porte de “substancias proibidas”.
A infraestrutura era precária, poucas opções de alimentação, higiene e acomodações, muitas vezes ocorriam panes no equipamento de luz e som, e então os vagalumes cinzeiros produziam o espetáculo, algumas bandas não corresponderam à expectativa, outras programadas não compareceram, rolou muita droga para um “careta” convicto como eu, mas nada disso importava, pois para um jovem porto-alegrense “filhinho da mamãe” como eu, e que nunca havia participado de aventura tão louca em minha tão incipiente vida, estar ajudando a escrever a história do rock nacional era o máximo.
Nos intervalos dos shows, os “mochileiros” do Camburock “invadiam” a praia de Camboriú, subvertendo a ordem e colorindo o ambiente com sua alegria e descontração.
Não pretendo cansá-los com minhas reminiscências da volta para casa, mesmo porque em minha cabeça projetavam-se os três dias mágicos do Festival, e pedindo desculpas as outras testemunhas oculares da história que também estiveram lá pelas incoerências e incongruências relatadas, concluo dizendo que que foi um dos grandes momentos de minha já cinqüentenária vida, pela coragem de estabelecer uma meta e tentar alcançá-la, pela ousadia de, aos dezessete anos tomar as rédeas de minha vida e, sem pedir autorização, seguir o caminho por mim escolhido, pela gratificação de ver concretizado um sonho juvenil e, pela loucura de fazer tudo isso sem nenhum planejamento.
Se faria tudo novamente?
Com a experiência acumulada, tendo tropeçado em todas as pedras do caminho, consciente de nossa realidade atual, e com todos os freios sociais e comportamentais impostos pela sociedade, com certeza NÃO! Infelizmente acreditamos que só podemos nos permitir ser “loucos” e irresponsáveis na juventude, e talvez esse seja um dos motivos por termos nos tornado uma sociedade hipócrita, cruel, materialista e insensível, amoral e sem rumo, correndo desenfreadamente em direção ao abismo de nossas existências, minha culpa, minha máxima culpa...
Autoria: Paulo Bettanin
Acompanhe amanhã a Trilha sonora do Camburock, com vídeos e a história das bandas que participaram do Festival.
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